terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Cravo e a Rosa




Da janela onde posa,
te querendo como Rosa,
de tão maravilhosa,
(fala em tom de prosa,
mais pensando saborosa),
com proposta indecorosa,
e atitude que não dosa,
um tanto desastrosa,
mas ainda atenciosa,
mais ainda, prazerosa,
da glande também rosa,
Cravo, goza.

E você tão desejosa,
se entregou tão amistosa,
sem lembrar da rebordosa;
esqueceu-se de que é rosa,
uma flor que é tão formosa,
mas também perniciosa.


quinta-feira, 14 de julho de 2011

O dia em que choveu ao contrário.




Foi o preâmbulo, um lampejo.

Os feixes iluminados vinham de ambas as partes, trôpegos como que bêbados, e ainda assim chocaram-se no instante central, contradizendo as nuvens que pareceram não receber o recado: nublaram-se umas nas outras, e eram cada vez menos a se contar no céu alvo. Mas o aguaceiro se anuncia, avisou o jornal, e o ambulante começou a vender guarda-chuvas automáticos no cruzamento principal. Logo estará rodeado de desprevenidos querendo comprá-los. Todavia, não há cores no céu e nem no cruzamento e nem nos guarda-chuvas e nem nestas pessoas. Aqui, presos ao trânsito, apenas alguns carros de luxo são vermelhos e chamam a atenção: aglutinam-se em prenúncio a chuva que está porvir. Eram cento-e-oitenta-buzinadas-por-minuto, e os estrondos ritmados dos trovões pouco assustaram. Tampouco se escutaram. Afora isto, estavam já preparados, não deveriam mesmo se assustar. Não fosse o inesperado de não cair uma gota sequer do céu.

Elas vieram sim, mas não como o previsto: vinham das sarjetas, água de esgoto, transbordando ruas, inundando casas, contaminando vidas. Alguns tentavam escapar subindo em bancos de praça, correndo para lugares de maior altitude. Mas durante quarenta dias e quarenta noites, a água brotou ininterrupta e fez da cidade um mar morto infindo. Boiavam excrementos. Boiavam os carros de luxo vermelhos. Boiavam o ambulante e seus guarda-chuvas acinzentados. Boiavam todos com seus guarda-chuvas automáticos em punho.

A água suja tingia suas peles num tom amarelo-esverdeado, camuflando-os. Nos primeiros dias, os corpos expeliam excrementos no mar, o que logo deixou de ser necessário. O cheiro fétido, que pode parecer insuportável em primeira instância, passados alguns dias também não era mais notado; junto com ele, iam-se as vontades, a fome, a sede. Eram agora plânctons, incapazes de tudo e indistinguíveis de todos. Mas o frio, este sim, continuava a ser molesto para eles. Os trapos ensopados que vestiam, não sendo capazes de mantê-los aquecidos, os resfriavam ainda mais. E também o vento batia forte nos corpos tingidos, arrastando-os por quilômetros, mas nunca os permitindo diferente paisagem.

Até que em um destes arrastões, um guarda-chuva se abriu. E seu dono o agarrou firmemente, único bem que ainda lhe restava. Tentou fechá-lo em vão, para então ser fisgado como um peixe preso ao anzol. Voou. No mar, os que boiavam observavam a cena admirados - ele estava livre. Não tinham nada a perder. Aos poucos, um a um tomava coragem e abria o guarda-chuva contra a corrente de ar.

Naquele dia, oito meses passados, o mar estava secando.
E o crepúsculo da manhã se anunciava com uma chuva de pessoas esperançosas em direção ao céu.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Pães, queijos, tapas e beijos.



Ei, me escute, observe que a noite cai fria ao desalentado, e que este também cai frio, num desespero contido, e numa voz também contida, rouca, ensaia um grito, quase uma súplica, quase inaudível, um sussurro, Cale-se, pare e escute, há de requerer algum esforço, Cadê meu pé de meia?, é o que diz.

Que inferno, sei o que está pensando, tomei-lhe tempo com isso, um pé de meia, diz ele e quase não se escuta, mas pense se não é poético, o desalento rogando abrigo, o aquecer, o verbo, a ação de um objeto inanimado, e quanta poesia não existe em uma meia, esse pedacinho de pano em formato de "L" e algodão cruzado, um ângulo reto, percebe a comparação, e pense que pode isso representar para ele, pobre coitado, pois que pé de meia pode ter outros significados, outras relações, o amante à amada, o faminto à comida, a metáfora de platão, questionemos, mas veja que de poesia nada há, nem rima nem verso, aliás, não há nada em absoluto, quase nada, é o frio, é uma meia, é gente, vê, sente frio, e é só.

Percebe também, por vezes mais vale manter-se desiludido, pois que a noite cai fria por toda a parte, que o frio aqui é sensação física, e esta nada tem de psicológica, tampouco poética, mesmo que seja um rumo atraente, mesmo que muitos o queiram, seja eu ou você, sejamos carentes ou não de alento, o primeiro ou último alento, que é só hálito, sopro, e nada mais.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

Para Billy Negão, com amor




Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Um tanto monocromática, é verdade; as cores estão menos salpicadas nas flores em canteiros de meio de rua e mais nos carros que passam a toda velocidade pelo cruzamento principal. Mas há lojas, praças, mercados, escritórios, casas, estações. Letreiros luminosos piscam e apontam para todos os lados, e de qualquer um que se olhe estarão pessoas, muitas pessoas, passadas largas para qualquer direção. São crianças, por ora mãos dadas aos pais, ora à um carretel de pipa, senhoras desfilando sobretudos longos de pele sintética, executivos apressados com pastas e documentos às mãos e até mesmo um guarda de trânsito, o silvo na tentativa de ordenar o caos urbano. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.

Pintavam-se nele todas as raças, pois que ninguém diria que foi parido branco, este aí. Coloriu-se ao longo da vida, e no fim do branco só se notavam dois ou três fios de cabelo, quase invisíveis no emaranhado revolto, negro e crespo em sua cabeça. No sorriso sempre à mostra, os sete dentes que lhe restavam inteiros - quatro em cima e três em baixo - não precisariam de muito para suprir a falta dos demais e demonstrar todo o seu carisma à quem lhe rendesse um olhar que seja; as valetas, portas e vidros elétricos insulfimados estão aí para provar. O amarelo era ocre, na boca e nas unhas, mas havia também o preto e o roxo, sempre tão presentes nos sulcos cavados no sertão de sua pele. Até mesmo o sedutor vermelho carmim e o novíssimo nude davam as caras na ferida recém aberta, o pûs e sangue que lhe escorrem e melecam a grossa casca verde sobre a pele, não se sabe se sujeira ou putrefação.

Falante que só ele, sua voz era abafada e inconstante. Alguns transeuntes desprevenidos chegavam mesmo a se assustar e correr quando, de repente, eram supreendidos por um grito inesperado de indignação. Por sorte estava sempre rodeado de amigos, todos sempre muito bem dispostos a ouvir o que tinha a dizer sobre qualquer assunto. Assim, conversava amenidades com Silvio Santos, política com o Lula - esse diabo do Fome Zero, dizia -, futebol com o Pelé, safadezas com a Rita Cadillac. Mas em meio a tantos famosos, seu mais fiel amigo, Billy Negão, era tão vira-lata quanto ele. À ele, dedicava sempre os maiores pedaços de pão.

E não era só sua boca que não parava de mexer. Ele gesticulava, a cabeça tremia, os olhos saltavam, o peito estufava, os braços rasgavam o ar. Talvez quisesse que o percebessem vivo, fingir fazer parte do meio. Talvez fosse apenas para ter certeza de que ainda não havia falecido. Mas não hoje. Hoje ele estava parado. A não ser pelos movimentos que Billy lhe causava quando rebuscava a carne morta - última e maior refeição que pôde lhe servir.

Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Uma mulher compra as últimas edições de Caras e Tititi enquanto um senhor espera o 52 passar lendo os últimos acontecimentos do Egito. Os executivos saem em grupos, celulares em punho, para almoçar no McDonalds da esquina. Algumas crianças jogam bola, outras pulam corda e outras empinam pipa. O arco-íris de carros continua apressado, e o guarda continua tentando orquestrá-lo com seu apito. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ponto e vírgula (;)




Acabou num repente, assim mesmo, e poderia agora já parar de escrever, pois mais não é, pulou-se num piscar do futuro ocasional para o passado intencional. É claro que o momento em que começo a escrever esta frase já não é mais o mesmo em que termino, mas não posso fazer esta comparação com eles, pobres coitados, seria no mínimo injusto, pois ocorre que lá não houve um momento presente como aqui, presentes, inteiramente presentes, apenas os corpos, e muitas vezes nem estes, e as almas só de sobreaviso, esturricadas, inflamadas que estavam, presas que estavam, não puderam em momento algum realmente estar.

Esbarraram-se certo dia e logo depois eram amantes, tempo passado, daqueles que namoram as escondidas, não por força do hábito mas pelo hábito a força. Da alma distante, um sentia como se não andasse com as pernas, mas com os colhões, passadas largas, meladas, afobadas, desejosas, o desejo é mesmo uma coisa louca, pensava, mas não sabia bem com que cabeça, e se havia alguma, e será que penso ou são apenas instintos? ação? reação? felação? Mas ainda assim andava firme, escroto ante escroto, não havendo cérebro não há moral, repetia incontáveis vezes sem se dar conta de que havia sim um cérebro, e uma moral, talvez amoral à outros olhos, mas de que importa se era sua, pessoal, possessiva, fiel não aos demais, mas aos seus impulsos, seus desejos, seu prazer, sua mente, sua carne.

Pois gozava de dois acompanhantes, talvez três, se contabilizarmos a culpa, bendita ou maldita que seja, que lhe seguia como sombra, sempre próxima, grudada, marcando seus passos, seus atos, seu rastro, espelho que é, atraente que é, sempre escura, sempre, quase sempre, só não se deixando notar quando o todo também era negridão, sem foco de luz algum, sem um que atravessasse seu caminho. À estas horas, mascarado pela noite e desprezando o remorso, dedicava os verbos, o estar, o querer, o descobrir, o possuir

O outro, no embalo deste, talvez vergonhoso e certamente consciente, livrava-se aos poucos desta culpa justamente quando também desenvolvia o mesmo senso de moral pessoal, e o elevava à outro nível, afastando o remorso para seu bel prazer. Aos poucos se permitiria estar, ah se houvesse mais tempo!, mas decisão tomada já não cabem mais ses, será?, teimava em questionar, o fato consumado o consumindo, a relatividade das horas, o futuro, sua incerteza. Conjugava também o estar, o querer, o descobrir e o possuir, mas nesta hora já eram tempos passados.

Vale dizer que ambos eram simpáticos entre si, muitas afinidades, gostos em comum, e também personalidade, arianos, quentes, impulsivos, ansiosos, curiosos, turrões, imãs de mesmo pólo e que ainda assim se grudam com tamanha intensidade, vai entender. Fico pensando o que poderia ser se continuassem a se ver, a se tocar, a trair apenas aos demais e nunca a si mesmos. É mesmo muito chato acabar um conto assim, já acabado desde o princípio, mas as coisas são como são, e o que posso fazer? Por hora a moral pessoal cedeu à coletiva, data marcada pro fim. Do futuro já não sei. Talvez continuem amigos, talvez algo mais, depois, talvez, quem sabe.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Interrogação (?)





Interrogação sim, posto que não sei bem o que é isto, se crônica, conto, poesia, desabafo, diarréia, realidade ou ficção, melhor dizer o que não é, pois certo de que não é crítica, e duvidoso se realmente é, ou apenas está, como um acontecimento passageiro, como tudo, enfim, pouco importa, à dúvida não restam respostas.

Eram vinte horas e cinquenta e sete minutos e uma cabeça. Seu cérebro, entorpecido, pensamentos misturados em turbilhão, Valerá a pena? Será gostoso. E depois, o que será? Valerá a pena. Será gostoso? Os neurônios não chegam à um consenso, as veias se destacam mais e mais a cada sinapse realizada. Aos olhos, boca, ouvidos, às veias já salientes sob a têmpora, o sangue em frenesi tamborila descompassado. O silêncio é mesmo ótimo para enfatizar os ruídos do corpo. Tum. Tum. Tum. A vista no pulso, a mão vermelha, macia e vermelha, suada, carmim, gotejando perfume? suor? sangue? Tum. Tum. Tum. Foram três pulsações num segundo, é, o tempo é mesmo relativo. Nove horas. Tum. Tum. Tum. Olhos pro horizonte, graças a Deus, lá está, vêm sorrindo, que dentes lindos, chega brilham, tão brancos como nuvens? porra? micose? Melhor não pensar nisso agora, há coisas mais importantes a fazer, um passo por vez, o primeiro é o degrau do ônibus.

Sentam-se juntos, no fundo. Por enquanto estão a sós, mãos dadas, o que pode parecer romântico, mas não há tempo para romances, não agora, quem sabe um dia, quem sabe 1° de abril, mas agora atém-se apenas em notar quem está por vir e onde se acomodarão? incomodarão? Parece que não, mas, droga, as coisas nunca são como parecem ser, e lá vem um sentar ao lado, o dedo como que coreografado no nariz, entra-e-sai-e-desce-e-gira-e-volta-para-a-boca. Logo dormirá, não se preocupe, é o que diz, mas acho que a preocupação cede à vontade antes mesmo do primeiro ressonar do motor. São agora vinte e uma horas e trinta minutos, e na esquerda macia e carmim contam-se dez dedos entrelaçados, mas logo contar-se-ão mais cinco, e além destes, duas pernas, dois braços, peito e abdômen peludos, pinto e bunda. Os lábios percorrem corpo, pescoço, queixo, língua, dando margem aos beijos apaixonados? carentes? masoquistas? A única certeza nestes é o prazer de ambos, que gozam um do outro, e o homem, ao lado, que goza também de ambos, safado este diga-se de passagem, que preteriu o sono ao voyeurismo descarado. As mãos afagam os rostos, mas não há chance para o romance, vinte e três que são, já chegaram ao seu destino, e logo tratam de descer.

Cada qual para um lado, segue a vida, como se não se conhecessem em todos os sentidos, e com todos eles também. Olha para trás, e lá se vai o sorriso? o branco? a nuvem? a porra? micose? o sangue? o suor? a paixão? a carência? o masoquismo? Não importa, agora já foi, já virou ponto na vista, não mais o enxerga, ao menos até amanhã. Chega em casa, boa noite querido, como foi seu dia, tomam banho, comem algo, riem, vão dormir, o sexo para depois.