quinta-feira, 14 de julho de 2011

O dia em que choveu ao contrário.




Foi o preâmbulo, um lampejo.

Os feixes iluminados vinham de ambas as partes, trôpegos como que bêbados, e ainda assim chocaram-se no instante central, contradizendo as nuvens que pareceram não receber o recado: nublaram-se umas nas outras, e eram cada vez menos a se contar no céu alvo. Mas o aguaceiro se anuncia, avisou o jornal, e o ambulante começou a vender guarda-chuvas automáticos no cruzamento principal. Logo estará rodeado de desprevenidos querendo comprá-los. Todavia, não há cores no céu e nem no cruzamento e nem nos guarda-chuvas e nem nestas pessoas. Aqui, presos ao trânsito, apenas alguns carros de luxo são vermelhos e chamam a atenção: aglutinam-se em prenúncio a chuva que está porvir. Eram cento-e-oitenta-buzinadas-por-minuto, e os estrondos ritmados dos trovões pouco assustaram. Tampouco se escutaram. Afora isto, estavam já preparados, não deveriam mesmo se assustar. Não fosse o inesperado de não cair uma gota sequer do céu.

Elas vieram sim, mas não como o previsto: vinham das sarjetas, água de esgoto, transbordando ruas, inundando casas, contaminando vidas. Alguns tentavam escapar subindo em bancos de praça, correndo para lugares de maior altitude. Mas durante quarenta dias e quarenta noites, a água brotou ininterrupta e fez da cidade um mar morto infindo. Boiavam excrementos. Boiavam os carros de luxo vermelhos. Boiavam o ambulante e seus guarda-chuvas acinzentados. Boiavam todos com seus guarda-chuvas automáticos em punho.

A água suja tingia suas peles num tom amarelo-esverdeado, camuflando-os. Nos primeiros dias, os corpos expeliam excrementos no mar, o que logo deixou de ser necessário. O cheiro fétido, que pode parecer insuportável em primeira instância, passados alguns dias também não era mais notado; junto com ele, iam-se as vontades, a fome, a sede. Eram agora plânctons, incapazes de tudo e indistinguíveis de todos. Mas o frio, este sim, continuava a ser molesto para eles. Os trapos ensopados que vestiam, não sendo capazes de mantê-los aquecidos, os resfriavam ainda mais. E também o vento batia forte nos corpos tingidos, arrastando-os por quilômetros, mas nunca os permitindo diferente paisagem.

Até que em um destes arrastões, um guarda-chuva se abriu. E seu dono o agarrou firmemente, único bem que ainda lhe restava. Tentou fechá-lo em vão, para então ser fisgado como um peixe preso ao anzol. Voou. No mar, os que boiavam observavam a cena admirados - ele estava livre. Não tinham nada a perder. Aos poucos, um a um tomava coragem e abria o guarda-chuva contra a corrente de ar.

Naquele dia, oito meses passados, o mar estava secando.
E o crepúsculo da manhã se anunciava com uma chuva de pessoas esperançosas em direção ao céu.

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