Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Um tanto monocromática, é verdade; as cores estão menos salpicadas nas flores em canteiros de meio de rua e mais nos carros que passam a toda velocidade pelo cruzamento principal. Mas há lojas, praças, mercados, escritórios, casas, estações. Letreiros luminosos piscam e apontam para todos os lados, e de qualquer um que se olhe estarão pessoas, muitas pessoas, passadas largas para qualquer direção. São crianças, por ora mãos dadas aos pais, ora à um carretel de pipa, senhoras desfilando sobretudos longos de pele sintética, executivos apressados com pastas e documentos às mãos e até mesmo um guarda de trânsito, o silvo na tentativa de ordenar o caos urbano. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.
Pintavam-se nele todas as raças, pois que ninguém diria que foi parido branco, este aí. Coloriu-se ao longo da vida, e no fim do branco só se notavam dois ou três fios de cabelo, quase invisíveis no emaranhado revolto, negro e crespo em sua cabeça. No sorriso sempre à mostra, os sete dentes que lhe restavam inteiros - quatro em cima e três em baixo - não precisariam de muito para suprir a falta dos demais e demonstrar todo o seu carisma à quem lhe rendesse um olhar que seja; as valetas, portas e vidros elétricos insulfimados estão aí para provar. O amarelo era ocre, na boca e nas unhas, mas havia também o preto e o roxo, sempre tão presentes nos sulcos cavados no sertão de sua pele. Até mesmo o sedutor vermelho carmim e o novíssimo nude davam as caras na ferida recém aberta, o pûs e sangue que lhe escorrem e melecam a grossa casca verde sobre a pele, não se sabe se sujeira ou putrefação.
Falante que só ele, sua voz era abafada e inconstante. Alguns transeuntes desprevenidos chegavam mesmo a se assustar e correr quando, de repente, eram supreendidos por um grito inesperado de indignação. Por sorte estava sempre rodeado de amigos, todos sempre muito bem dispostos a ouvir o que tinha a dizer sobre qualquer assunto. Assim, conversava amenidades com Silvio Santos, política com o Lula - esse diabo do Fome Zero, dizia -, futebol com o Pelé, safadezas com a Rita Cadillac. Mas em meio a tantos famosos, seu mais fiel amigo, Billy Negão, era tão vira-lata quanto ele. À ele, dedicava sempre os maiores pedaços de pão.
E não era só sua boca que não parava de mexer. Ele gesticulava, a cabeça tremia, os olhos saltavam, o peito estufava, os braços rasgavam o ar. Talvez quisesse que o percebessem vivo, fingir fazer parte do meio. Talvez fosse apenas para ter certeza de que ainda não havia falecido. Mas não hoje. Hoje ele estava parado. A não ser pelos movimentos que Billy lhe causava quando rebuscava a carne morta - última e maior refeição que pôde lhe servir.
Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Uma mulher compra as últimas edições de Caras e Tititi enquanto um senhor espera o 52 passar lendo os últimos acontecimentos do Egito. Os executivos saem em grupos, celulares em punho, para almoçar no McDonalds da esquina. Algumas crianças jogam bola, outras pulam corda e outras empinam pipa. O arco-íris de carros continua apressado, e o guarda continua tentando orquestrá-lo com seu apito. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.
Ei sr. lindo!
ResponderExcluirComovente!
A idéia do Billy Negão em sua última refeição foi chocante!
Muito contemporâneo, e terrivelmente humano!
Bjo!
Tons preto e branco de uma cidade um tanto
ResponderExcluirpeculiar....