domingo, 20 de fevereiro de 2011

Para Billy Negão, com amor




Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Um tanto monocromática, é verdade; as cores estão menos salpicadas nas flores em canteiros de meio de rua e mais nos carros que passam a toda velocidade pelo cruzamento principal. Mas há lojas, praças, mercados, escritórios, casas, estações. Letreiros luminosos piscam e apontam para todos os lados, e de qualquer um que se olhe estarão pessoas, muitas pessoas, passadas largas para qualquer direção. São crianças, por ora mãos dadas aos pais, ora à um carretel de pipa, senhoras desfilando sobretudos longos de pele sintética, executivos apressados com pastas e documentos às mãos e até mesmo um guarda de trânsito, o silvo na tentativa de ordenar o caos urbano. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.

Pintavam-se nele todas as raças, pois que ninguém diria que foi parido branco, este aí. Coloriu-se ao longo da vida, e no fim do branco só se notavam dois ou três fios de cabelo, quase invisíveis no emaranhado revolto, negro e crespo em sua cabeça. No sorriso sempre à mostra, os sete dentes que lhe restavam inteiros - quatro em cima e três em baixo - não precisariam de muito para suprir a falta dos demais e demonstrar todo o seu carisma à quem lhe rendesse um olhar que seja; as valetas, portas e vidros elétricos insulfimados estão aí para provar. O amarelo era ocre, na boca e nas unhas, mas havia também o preto e o roxo, sempre tão presentes nos sulcos cavados no sertão de sua pele. Até mesmo o sedutor vermelho carmim e o novíssimo nude davam as caras na ferida recém aberta, o pûs e sangue que lhe escorrem e melecam a grossa casca verde sobre a pele, não se sabe se sujeira ou putrefação.

Falante que só ele, sua voz era abafada e inconstante. Alguns transeuntes desprevenidos chegavam mesmo a se assustar e correr quando, de repente, eram supreendidos por um grito inesperado de indignação. Por sorte estava sempre rodeado de amigos, todos sempre muito bem dispostos a ouvir o que tinha a dizer sobre qualquer assunto. Assim, conversava amenidades com Silvio Santos, política com o Lula - esse diabo do Fome Zero, dizia -, futebol com o Pelé, safadezas com a Rita Cadillac. Mas em meio a tantos famosos, seu mais fiel amigo, Billy Negão, era tão vira-lata quanto ele. À ele, dedicava sempre os maiores pedaços de pão.

E não era só sua boca que não parava de mexer. Ele gesticulava, a cabeça tremia, os olhos saltavam, o peito estufava, os braços rasgavam o ar. Talvez quisesse que o percebessem vivo, fingir fazer parte do meio. Talvez fosse apenas para ter certeza de que ainda não havia falecido. Mas não hoje. Hoje ele estava parado. A não ser pelos movimentos que Billy lhe causava quando rebuscava a carne morta - última e maior refeição que pôde lhe servir.

Na rua XV, no centro, há de tudo que se possa imaginar. Uma mulher compra as últimas edições de Caras e Tititi enquanto um senhor espera o 52 passar lendo os últimos acontecimentos do Egito. Os executivos saem em grupos, celulares em punho, para almoçar no McDonalds da esquina. Algumas crianças jogam bola, outras pulam corda e outras empinam pipa. O arco-íris de carros continua apressado, e o guarda continua tentando orquestrá-lo com seu apito. E pode ser que ninguém note, mas havia também, ali, um homem parado.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ponto e vírgula (;)




Acabou num repente, assim mesmo, e poderia agora já parar de escrever, pois mais não é, pulou-se num piscar do futuro ocasional para o passado intencional. É claro que o momento em que começo a escrever esta frase já não é mais o mesmo em que termino, mas não posso fazer esta comparação com eles, pobres coitados, seria no mínimo injusto, pois ocorre que lá não houve um momento presente como aqui, presentes, inteiramente presentes, apenas os corpos, e muitas vezes nem estes, e as almas só de sobreaviso, esturricadas, inflamadas que estavam, presas que estavam, não puderam em momento algum realmente estar.

Esbarraram-se certo dia e logo depois eram amantes, tempo passado, daqueles que namoram as escondidas, não por força do hábito mas pelo hábito a força. Da alma distante, um sentia como se não andasse com as pernas, mas com os colhões, passadas largas, meladas, afobadas, desejosas, o desejo é mesmo uma coisa louca, pensava, mas não sabia bem com que cabeça, e se havia alguma, e será que penso ou são apenas instintos? ação? reação? felação? Mas ainda assim andava firme, escroto ante escroto, não havendo cérebro não há moral, repetia incontáveis vezes sem se dar conta de que havia sim um cérebro, e uma moral, talvez amoral à outros olhos, mas de que importa se era sua, pessoal, possessiva, fiel não aos demais, mas aos seus impulsos, seus desejos, seu prazer, sua mente, sua carne.

Pois gozava de dois acompanhantes, talvez três, se contabilizarmos a culpa, bendita ou maldita que seja, que lhe seguia como sombra, sempre próxima, grudada, marcando seus passos, seus atos, seu rastro, espelho que é, atraente que é, sempre escura, sempre, quase sempre, só não se deixando notar quando o todo também era negridão, sem foco de luz algum, sem um que atravessasse seu caminho. À estas horas, mascarado pela noite e desprezando o remorso, dedicava os verbos, o estar, o querer, o descobrir, o possuir

O outro, no embalo deste, talvez vergonhoso e certamente consciente, livrava-se aos poucos desta culpa justamente quando também desenvolvia o mesmo senso de moral pessoal, e o elevava à outro nível, afastando o remorso para seu bel prazer. Aos poucos se permitiria estar, ah se houvesse mais tempo!, mas decisão tomada já não cabem mais ses, será?, teimava em questionar, o fato consumado o consumindo, a relatividade das horas, o futuro, sua incerteza. Conjugava também o estar, o querer, o descobrir e o possuir, mas nesta hora já eram tempos passados.

Vale dizer que ambos eram simpáticos entre si, muitas afinidades, gostos em comum, e também personalidade, arianos, quentes, impulsivos, ansiosos, curiosos, turrões, imãs de mesmo pólo e que ainda assim se grudam com tamanha intensidade, vai entender. Fico pensando o que poderia ser se continuassem a se ver, a se tocar, a trair apenas aos demais e nunca a si mesmos. É mesmo muito chato acabar um conto assim, já acabado desde o princípio, mas as coisas são como são, e o que posso fazer? Por hora a moral pessoal cedeu à coletiva, data marcada pro fim. Do futuro já não sei. Talvez continuem amigos, talvez algo mais, depois, talvez, quem sabe.